Depois de ter ganhado destaque nacional devido aos tremores que apavoraram a população no ano passado, a pequena cidade de Alagoinha, no Agreste do estado, com apenas 13.761 habitantes, volta a ser destaque na mídia, e dessa vez com um fato no mínimo surpreendente para uma região culturalmente machista e preconceituosa: o agricultor João Batista da Silva, de 51 anos de idade, que virou cabeleireiro, resolveu fazer a operação de troca de sexo e se transformar em Joisy. '"Adotei esta profissão porque era mais fácil para pessoas do meu tipo. Um dia ouviu no rádio que poderia tirar o pênis. Resolvi que só faltava aquilo para ser feliz", revela o primeiro homem que virou mulher no Agreste Pernambucano. A notícia ganhou destaque no Jornal do Commercio, que publicou uma série de reportagens especiais sobre o caso.
Na reportagem, Joicy conta que em 2004 procurou a Secretaria de Saúde de Alagoinha e ouviu a seguinte resposta: "Não tem disso por aqui". Insistente que é, descobriu o número 0800 61 1997, do Ministério da Saúde e ligou. "Fiquei quase uma hora no telefone com a moça", lembra. Insatisfeito com a conversa, Joisy escreveu uma carta de três páginas para o presidente da República contando todo o seu sofrimento. "Perguntei se não tinha condições de mudança de sexo, como Roberta Close." Alguns meses depois, chegou até a Secretaria de Saúde de Alagoinha uma carta de Brasília, mandando encaminha o cabeleireiro para um serviço voltado para transexuais. Ele conta que a notícia ganhou as ruas e logo virou piada. "Foi assim que eu soube, o povo rindo de mim".
João Batista, o agricultor que virou cabeleireiro e queria ser mulher, morreu para dar a vida a Joicy na segunda-feira, 22 de novembro de 2010, às 12h30, no Hospital das Clínicas, na Cidade Universitária, no Recife, pesando 74 quilos e medindo 1,63 metros. Conheça essa história na reportagem de Fabiana Moraes, com imagens dos fotógrafos Rodrigo Lobo e Hélia Scheppa.
Joicy Melo da Silva nasceu no dia 22 de novembro de 2010, às 12h30. Pesava 74 quilos e media 1,63 metro de altura. Naquele dia, mais sete partos foram realizados no Hospital das Clínicas, na Cidade Universitária, Recife. O de Joicy foi sem dúvida o mais complicado de todos: durou quase sete anos e envolveu uma série de especialistas. Três deles estavam no exato momento no qual ela veio ao mundo. O primeiro a chegar ao bloco cirúrgico saiu de casa às 7h, sem tomar café da manhã. Sabia que, como médico, tinha que mudar tal hábito. Outro atravessou entre aborrecido e resignado o engarrafamento de todos os dias. Havia sempre uma multidão de carros entre sua casa, na Zona Norte, e o hospital onde, no saguão, sempre há alguém desesperado. O último, que mora perto do mar, visitou a paciente um dia antes. Tinha que conferir se ela realmente estava bem para vir ao mundo. Quando Joicy nasceu, morreu João Batista, 51 anos, filho de Irene (83, viva) e Eupídio Luiz (77, enterrado). Foram os dois que ensinaram o garoto a plantar milho, mandioca, feijão.
Moravam na caatinga, no Campo do Magé, área rural de Alagoinha (13.761 habitantes, 225 quilômetros da capital). Não poderiam prever que, décadas depois, o filho iria usar esmalte cor rosa-pitanga e sofrer por um rapaz enquanto ouvia música de novela. Não sabiam que ali na roça quem os ajudava era uma menina. Aí o chamavam de João. João que sempre foi muito zeloso, João que nunca deu trabalho, João que até plantou um jardim ao lado da casa. Só para eles esse menino deixou saudade – há tempos Joicy sabia que ele existia apenas aparentemente. Foi por isso que decidiu, apesar do olhar triste e reprovador da mãe, findar com ele. Um dia, deitou-se em uma maca e dormiu. Ali matou João. Ali nasceu Joicy.

Pegou a moto e foi pela estrada de barro até a Secretaria de Saúde de Alagoinha. Queria saber como fazia para mudar de sexo. Falou com Teresinha Ferreira de Lira, então diretora administrativa, e Ésio Paes da Silva, então secretário de Saúde do município (estamos em 2004). "Não tem disso por aqui", informaram. Sem saber o que fazer, voltou para casa. Dias depois, descobriu o número 0800 61 1997. Ministério da Saúde. Ligou. "Fiquei quase uma hora no telefone com a moça", lembra Joicy. Não satisfeita com a conversa, escreveu uma carta para o presidente da República. Foram três páginas contando como vivia, o que tinha vivido, o que queria viver. "Perguntei se não tinha condições de mudança de sexo, como Roberta Close." Passaram-se alguns meses e ela ficou sabendo que na Secretaria de Saúde de Alagoinha havia chegado uma carta de Brasília falando do seu caso. Mandavam encaminhar Joicy para um serviço voltado para transexuais. O assunto saiu do gabinete, ganhou as ruas e virou piada: o "aqui não tem disso não" foi compartilhado na padaria, nos restaurantes, nas mesas de bilhar. "Foi assim que eu soube, o povo rindo de mim."
Antes de chegar a Alagoinha, a carta do Ministério da Saúde passou pela IV Gerência Regional de Saúde do Estado (Geres), em Caruaru, que atende parte das cidades do Agreste. Foi para lá que Joicy foi encaminhada. Foi lá que conseguiu finalmente ter sua transexualidade reconhecida. Dilene Fernandes Almeida, então assessora da diretoria, a atendeu. "Recebemos uma demanda do governo federal informando sobre os contatos que ela havia realizado por meio da carta e do telefone da ouvidoria. Ela tinha se queixado de falta de atenção."
Apesar de o Hospital das Clínicas ter iniciado as operações de mudança de sexo (ou neovaginoplastia) em 2001, a Geres não encaminhou automaticamente a transexual para o local, como seria óbvio. Foram dois anos, com a cabeleireira indo a Caruaru a cada dois meses (a cerca de 100 quilômetros de sua casa) para tentar entender se faria a cirurgia. Para isso, também dependia dos carros da Secretaria de Saúde de Alagoinha, várias vezes indisponíveis. O entrave principal era a necessidade de um simples encaminhamento da paciente para o HC, que deveria ser feito pelo órgão municipal de saúde de sua cidade. Isso não aconteceu.
Joicy acabou contando, como em diversos momentos, com a ajuda de algum afeto alheio para transpor o preconceito e a falta de atenção. "Entrei em contato e marquei a consulta, sabia que não adiantava só encaminhar", lembra Dilene. Joicy, diz ela, é a típica paciente que se dirige aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). "Geralmente, são carentes de tudo: emocionalmente, financeiramente. Precisam de um tipo diferente de atenção."
Para chegar ao Hospital das Clínicas pela manhã (as consultas ginecológicas acontecem entre as 8h e as 8h30 da manhã) e dar conta de cerca de 250 quilômetros entre Perpétuo Socorro e a Cidade Universitária, Joicy levantava às 3h. Parecia com o tempo em que trabalhava na roça, quando saía cedo e só tomava café na volta. Viajava em um dos seis carros que compõem a frota da Secretaria de Saúde ou, como dito, em sua moto Honda 2008.
Às vezes, fazia a pé o percurso de Perpétuo Socorro até Alagoinha (12 quilômetros de estrada de barro). Depois pegava o carro. Seguia até o Recife. Quando voltava para o município, no fim da tarde, tinha que arrumar um jeito de ir para casa, já que os carros só deixavam-na até a cidade, como se o distrito não fizesse parte de Alagoinha. No dia de sua última visita antes da operação (18/11/2010), Joicy esperou o carro durante quase seis horas, no HC, para voltar para casa. Quando chegou a Alagoinha, à noite, foi informada que não havia transporte para levá-la até Perpétuo Socorro. Sem ter onde dormir, procurou uma conhecida que conseguiu para ela uma cama no hospital da cidade ("tava limpinha, cheirosinha"). Contou mais uma vez com algum afeto alheio para transpor mais preconceito e falta de atenção.
"IGNORANTE" - Para Teresinha Ferreira (ainda hoje à frente da Saúde de Alagoinha) Joicy, ao contrário do que Dilene observou, estava longe de apresentar carência e fragilidade emocional. "Quando ela vinha aqui, queria resolver tudo na hora. Não falava direito com a gente. Muito ignorante. Mas o pessoal sempre tratou ela normalmente. Tiravam, às vezes, só uma ondazinha, porque ela tem jeitinho de gay, né?" O atual secretário de Saúde, Carlos Augusto, por sua vez, diz que a secretaria não a tratou incorretamente e sim a orientou a procurar um lugar "com mais condição". "Ele é uma pessoa difícil, você deve ter percebido." A personalidade de Joicy, no entanto, não explica por que, durante os quase sete anos de viagens para Caruaru e para o Recife, ela deixou de obter o Tratamento Fora do Domicílio (TFD), uma ajuda de custo de R$ 8,40 para pacientes que vão se consultar fora da cidade. Também não recebeu a ajuda para a gasolina necessária nas viagens feitas na própria moto (outro direito), quando tinha consulta marcada, mas os carros da secretaria estavam quebrados.
Não receber o benefício também foi uma escolha pessoal, baseada na má vontade com a qual era tratada. "Quando eu soube que podia pedir o dinheiro, já tinha passado da metade do tratamento. Nem fui pedir. Sabia que ia ter que entrar em outra briga."
O diálogo com a família - Joicy visitou suas irmãs quando soube da data da cirurgia. Primeiro, foi na casa de Maria do Socorro (Nenem). Depois, na de Maria Dejanira, que vive com a filha Luciana (foto), de 28 anos. Vivem no Sítio do Magé, onde nasceram.
PRIMEIRA CASA:
Nenem: Eu não tenho nada contra você, mas tem um risco. Tenho medo da cirurgia em si.
Joicy: não vai acontecer nada, vai dar tudo certo.
Nenem: eu sou contra, não precisava chegar a esse extremo, você com essa idade...
Joicy: não tenho medo de nada. É o trem passando e eu me jogando.
Nenem: tirar é fácil, João...
Joicy: não vim aqui pedir opinião sua.
Nenem (olhando para a repórter): eu temo é pela vida dele.
Joicy: eu já falei que não tem problema, tem nada a ver.
Nenem: Olha, João, faça o que você quiser.
Joicy: a pessoa não escolhe ser assim.
Nenem: É que você não tem amor a sua vida. Desejo que você seja feliz, mas não posso lhe ajudar. Para mim você sempre será a mesma pessoa. Mesmo depois da cirurgia.
Joicy: não vai acontecer nada, vai dar tudo certo.
Nenem: eu sou contra, não precisava chegar a esse extremo, você com essa idade...
Joicy: não tenho medo de nada. É o trem passando e eu me jogando.
Nenem: tirar é fácil, João...
Joicy: não vim aqui pedir opinião sua.
Nenem (olhando para a repórter): eu temo é pela vida dele.
Joicy: eu já falei que não tem problema, tem nada a ver.
Nenem: Olha, João, faça o que você quiser.
Joicy: a pessoa não escolhe ser assim.
Nenem: É que você não tem amor a sua vida. Desejo que você seja feliz, mas não posso lhe ajudar. Para mim você sempre será a mesma pessoa. Mesmo depois da cirurgia.
SEGUNDA CASA:
Joicy: Oi, Deja. vim avisar que vou fazer a cirurgia.
Dejanira: vai fazer, mas não vejo motivo. Sei que é complicado. Se fosse doença...
Luciana: ainda não tirou essa ideia da cabeça não? A sua família praticamente não concorda.
Joicy: isso não tem nada a ver.
Luciana: não acredito que vai ficar como mulher, a ciência está muito avançada, mas não é a mesma coisa...
Joicy: e que agouro é esse?
Luciana: tu sempre foi assim, normal. Agora que fazer isso, ficar assim.
Dejanira: eu não quero nem saber o dia.
Joicy: apois eu vou dizer, é dia 21, segunda-feira
Luciana (com cara de riso): e vai mudar o resto do corpo também? Tirar esse jeito de homem?
Dejanira: olha, você quer, siga em frente.
Luciana: sabe o que eu acho? Que tu devia continuar assim, tio João. Mas você é muito ignorante, com as pessoas, com a sociedade, só quer estar certo. E você está errado.
Joicy: errado não, errada.
Luciana: para mim, vai ser sempre errado
Dejanira: isso é coisa de louco. Tá precisando de tratamento. Eu nunca vou te chamar de Joicy.
Luciana: e quem vai cuidar de tu depois da operação? Todo mundo trabalha, todo mundo tá ocupado.
Joicy: vou ficar na casa de alguém, vou fazer a cirurgia, não vou ficar esbarrada. Até teste de HIV eu fiz e para sua surpresa (olhando para Luciana), deu negativo
Luciana: porque para minha surpresa? É sonho seu, faça, tomara que dê certo. Agora, se não der...
Joicy: vai dar.
Dejanira (fazendo graça): e quem vai querer casar com você, hein? Eu mesma não ia querer casar com você.
Luciana (falando baixinho): ...e do jeito que todo mundo te odeia..
Dejanira: vai fazer, mas não vejo motivo. Sei que é complicado. Se fosse doença...
Luciana: ainda não tirou essa ideia da cabeça não? A sua família praticamente não concorda.
Joicy: isso não tem nada a ver.
Luciana: não acredito que vai ficar como mulher, a ciência está muito avançada, mas não é a mesma coisa...
Joicy: e que agouro é esse?
Luciana: tu sempre foi assim, normal. Agora que fazer isso, ficar assim.
Dejanira: eu não quero nem saber o dia.
Joicy: apois eu vou dizer, é dia 21, segunda-feira
Luciana (com cara de riso): e vai mudar o resto do corpo também? Tirar esse jeito de homem?
Dejanira: olha, você quer, siga em frente.
Luciana: sabe o que eu acho? Que tu devia continuar assim, tio João. Mas você é muito ignorante, com as pessoas, com a sociedade, só quer estar certo. E você está errado.
Joicy: errado não, errada.
Luciana: para mim, vai ser sempre errado
Dejanira: isso é coisa de louco. Tá precisando de tratamento. Eu nunca vou te chamar de Joicy.
Luciana: e quem vai cuidar de tu depois da operação? Todo mundo trabalha, todo mundo tá ocupado.
Joicy: vou ficar na casa de alguém, vou fazer a cirurgia, não vou ficar esbarrada. Até teste de HIV eu fiz e para sua surpresa (olhando para Luciana), deu negativo
Luciana: porque para minha surpresa? É sonho seu, faça, tomara que dê certo. Agora, se não der...
Joicy: vai dar.
Dejanira (fazendo graça): e quem vai querer casar com você, hein? Eu mesma não ia querer casar com você.
Luciana (falando baixinho): ...e do jeito que todo mundo te odeia..
Joicy não usa maquiagem. Não gosta de usar vestido. Não tem cabelo comprido. Na verdade, está ficando meio careca, coisa de quem vai fazer 51 anos de idade. Sua aparência sugere que ela ainda está engatinhando para mostrar socialmente a mulher que é – e, principalmente, para deixar para trás o agricultor que sempre foi. O fato de não possuir as mesmas características femininas e hiperbólicas das suas colegas de fila a destaca imensamente naquele grupo. Usa apenas bermuda, camiseta e sapatilhas pretas. Senta-se com as pernas abertas. É musculosa e às vezes um tanto rude. Carrega as maneiras de quem passou boa parte da vida dentro da roça, no meio do mato, plantando mandioca e cuidando de cabra, galinha, boi.
Suas únicas aproximações com as outras – e aquilo o que entendemos como feminino - são as unhas pintadas de vermelho, os peitos que já se destacam sob a camiseta e a profissão de cabeleireira. Sem os marcadores que a fariam, externamente, ser "mulher", Joicy termina sofrendo um preconceito duplo, que vem tanto daqueles que não experimentam a sua condição quanto dos próprios transexuais. Estas olhavam com certa incredulidade para aquela mulher. Era como se, naquele banco, um intruso estivesse sentado entre elas. Como se fosse uma piada de mau gosto feita por alguém que estava ali para lembrar a aparência que elas tinham antes dos longos cabelos e das calças justas.
Mas, se a imagem estereotipada da mulher ideal não se aplicava ao transexual, ela era, em meio aos outros oito transexuais repletos de curvas e batom, a única a ter o diagnóstico de distúrbio de identidade (assinado pelo psiquiatra Roberto Faustino), assim como os dois anos de terapia (com a psicóloga Inalda Lafayette). Portanto, legalmente, seria a primeira entre aquelas fêmeas hiperbólicas a fazer a cirurgia. A primeira, entre Dominics e Grazieles, a se livrar do pênis que lhe causa constrangimento. A primeira a ir ao bloco cirúrgico para sair de lá com uma vagina. Bastava a certeza disso, e não os brincos longos e o chinelo com flor, para que Joicy se sentisse bem consigo mesma. "Eu não tenho que usar saia e maquiagem para ser mulher. E eu não sou menos mulher por causa disso."
Entre as meninas, era a única a não se chamar Maria
Viviam aquela vida rural conhecida e até certo ponto idílica, na qual toda a família ajudava na plantação, na qual se bebia o leite tirado da vaca e se comia a comida que nascia no quintal. Família nordestina das boas para constar na TV, em conto, em livro, em matéria: os pais analfabetos criando os meninos sem lápis e com enxada, esta instrumento principal para a manutenção da vida de 14 crianças. Naquele momento, João fazia parte da contabilidade dos nascidos homens. Seguia logo cedo com os irmãos (Josenildo, Luiz Carlos, Francisco, Antônio, Melo, Pedro, Paulo, Aluísio) para plantar mandioca. As irmãs (Maria do Socorro, Maria Luiza, Maria Helena, Maria Dejanira, Maria da Graça) não experimentavam a condição de sexo frágil. Também passavam o dia, as costas curvadas, na lavoura. Quase 40 anos depois, João entraria na contabilidade das Marias nascidas vivas.
Se a roça não fazia distinção entre os gêneros, a casa os sublinhava. Nesta, era a mãe, Irene, que costumava cuidar daquilo o que é próprio do lar: a comida, a limpeza, a criação de um jardim. Mas o menino, depois de passar a manhã plantando, também entrava na tarefa que ainda só cabia a elas. É por isso que, hoje Joicy, o ex-João acredita: é claro que todo mundo sabia que ela queria ser mulher. "Eu fazia boneca com sabugo de milho. Não vou mentir para você, a gente não tinha posse." Mas no Sítio Bonsucesso, onde até hoje está a casa branca e espaçosa da família, não havia essa leitura. João era homem, ponto. Nasceu homem, ponto. É assim que a mãe, Irene, pensa. "Eu nunca notei. Eu não sabia dessa história, ele inventou isso depois que o pai se acabou."
A morte do pai, há 15 anos, de fato tornou menos constrangida a vida do menino. Mas, quando ele estava vivo, João teve alguns encontros com outros homens, é verdade que também com uma moça das redondezas apaixonada por ele (ela sofreu quando soube que o ex-amor se transformaria em Joicy). Depois que o pai morreu, foi a vez de João começar a morrer também. Em casa as coisas ficaram mais difíceis: Luiz Carlos, que até hoje mora com a mãe, não admitia aquela inédita feminilidade do irmão (hoje não se falam). João construiu um quarto separado da casa e deixou vago seu lugar à mesa. Era só o começo de sua vida apartada da família – na verdade, o começo de uma vida apartada até mesmo da ideia que temos de vida.
Continuou a trabalhar na roça onde ainda hoje mantém um pedaço de terra na qual planta feijão e mandioca. Depois trabalhou como eletricista. Depois, como vendedora em mercado. Depois, como ajudante em bar. Depois, como cozinheira em uma obra. Depois, como cabeleireira. Assim foi: para tornar-se Joicy, João tornou-se especialista em sobrevivência.
Acreditou que tudo ficaria bem quando comprou a casa depauperada onde até hoje vive, perto do matadouro de Perpétuo Socorro, distrito de Alagoinha. Antes chegou a morar um mês em São Paulo vendendo comida para passarinhos no Mercado Municipal. Não gostou. Voltou. Melhor cortar cabelo de agricultor e trabalhador de casa de farinha. Ali podia ser mais mulher. Na casinha depauperada, onde cozinha e banheiro quase se confundem, onde não existem esgoto nem água encanada (ninguém no distrito, aliás, tem), há um diploma onde se lê: "Certifico que João Batista da Silva participou com dinamismo e maestria do curso de cabeleireiro revelação (30h/60h) ministrado pelo cabeleireiro paulista Carlos Carvalho. Deus seja louvado." Certificado no vidro, secador, cadeira de cabeleireiro. Os símbolos de um novo tempo onde certamente ouviria menos a palavra "não". "Adotei esta profissão porque era mais fácil para pessoas do meu tipo." Um dia ouviu no rádio que poderia tirar o pênis. Resolveu que só faltava aquilo para ser feliz. Foi aí que seu doloroso e demorado rito de passagem começou.
Um comentário:
achamos super interessante a coragem de Joicy por ser tão humilde e conseguir realizar um de seus sonhos lhe desejo muita sorte e recuperação pois a conhecemos só não temos aprosimação com Joicy boa sorte. ass: Mara e Lucélia
Samambaia...
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